terça-feira, setembro 30, 2008

Espécie de Framboesa

Há uma grande questão que a Humanidade ainda não conseguiu resolver. E não, não estamos a falar do terrorismo internacional, nem da crise financeira ou das capas d’ “A Bola”. Esse grande mistério que intriga todas as cúpulas de poder tem o nome de Amora. Como vamos nós explicar às gerações mais novas que na Amora já houve jogos de primeira divisão? E, ainda por cima, num campo pelado?
Pois é, não é fácil. Há quem acredite em extraterrestres, há quem acredite que Urretavizcaya é o nome de um banco comercial basco, mas pouca gente acreditará que ali, nessa belíssima localidade que é a Amora, no meio daqueles prédios habitacionais de vários andares que esfregam os seus estendais uns nos outros com a ferrugem da Lisnave como pano de fundo, já houve futebol de primeira.
Só quando tentamos exprimir a nossa angústia a um estrangeiro e falamos em inglês é que nos apercebemos da dimensão deste problema. Pergunta-nos o camone:
- Remember the 1981 championship? Against which teams did you lose points?
E nós respondemos:
- We drew a game against Raspberry
- Raspberry?
- Yes.
- An ordinary berry… from a bush?...
- Yes. And then we blew it again when we played against Goodsight
- Goodsight??
Mais vale nem continuar com traduções literais, apesar do Sporting of Birds nem ter estado presente na primeira liga em praticamente nenhuma ocasião (*). A credibilidade do discurso vem logo por aí abaixo, como se nota.

E por aí abaixo veio o Amora, aos trambolhões por essas séries nacionais, espalhando-se ao comprido nessa sorridente AF Setúbal, onde vai lambendo as feridas de forma plácida, aconchegando-se nos tépidos lodos do estuário do Tejo donde parece não querer, e não poder, sair.

Não nos interessa inventar a pólvora nem provar que o Amora já jogou na primeira divisão e num campo pelado. Preferimos divulgar aquela que foi a última compota de (relativa) qualidade produzida lá para os lados da Medideira. O ano: 1994, ano em que o menino Raul Meireles idealizou a sua 14ª tatuagem. O local: 2ª Divisão de Honra. Os registos que se seguem podem impressionar algumas pessoas menos familiarizadas com o kitsch aterrador que envolvia como uma névoa tóxica o mundo futebolês do final de século passado.

Há muita coisa para dizer, em termos estilísticos, sobre esta foto. Tanta coisa que merece a análise cuidada dos verdadeiros futebófilos… Mas o mundo da Internet não se compadece com compêndios de arte. Por isso, vou apenas sintetizar alguns pontos que me parecem de relevância incontornável, deixando à vossa imaginação, capacidade de percepção e demasiado tempo livre os restantes aspectos.

1 – Tirar uma fotografia de frente para o sol é um excelente estratagema para sacar a careta mais risível de cada um.
2 – Fantásticos murais de publicidade local pintados manualmente como cenário, obrigatório nas catacumbas do futebol indígena tal como um tapete da última ceia de Cristo na casa dos nossos avós.
3 – Os tipos mais espertos do grupo de trabalho (o treinador e dois informadores) precaveram-se com óculos de sol, mas nenhuns óculos de sol conseguem ocultar o distinto porte do senhor em primeiro lugar a contar do lado esquerdo na fila do meio.
4 – O tipo que se esconde atrás do Pedra, à direita na fila do meio.
5 – O 3º tipo a contar da esquerda da fila do meio possui umas melenas de fazer inveja a qualquer Pearl Jam wannabe e está com cara de quem também está muito chateado com a vida, de acordo com a cartilha em voga em 1994. Pudera, estar com o sol nas trombas, levar com bombas atómicas no cabelo para o fazer descer pela manhã e ficar ao lado do treinador… não é fácil.
6 – 3 ou 4 bigodes, só na fila do meio.
7 – Já referimos o tipo que se esconde atrás do Pedra, à direita na fila do meio?
8 – E o fato de treino do tipo de bigode com óculos escuros à esquerda na fila do meio?
9 – Com certeza que já repararam no indivíduo que se esconde atrás do Pedra, à direita na fila do meio…
10 – Será que o tipo em 1º lugar a contar da esquerda na fila de cima é cego? Ou apenas não quer ver?
11 – Fila de baixo: apreciar o jeito descontraído do primeiro jogador a contar da esquerda e o jeito de “ai, mau; mas tu queres ver que vamos ter chatices?”, do Casimiro, o 5º a contar da esquerda (e a este ponto regressaremos mais abaixo).

A título particular, queremos destacar as seguintes individualidades desta autêntica fábrica de estilo que foi o Amora.

Major – A pincelada de disciplina num balneário aparentemente desorganizado. O putativo aspecto de Lionel Ritchie, o caniche esparramado na cabeça e o bigode discreto numa cara de poucos amigos ajudaram a cimentar o lugar de Major na História. Para complementar a imagem de um central duro de roer, uma patente militar como alcunha. Porém, e lamentavelmente, levaram o Major em pouca conta. Desapareceu num obscuro campo de batalha, ao comando de um exército sem soldados. A seguir a D. Sebastião, é por Major que a Amora mais chora em dias de nevoeiro.

Jaime – orelhas de Dumbo e sorriso de criança, Jaime só queria que lhe deixassem jogar à bola. E até tinha jeito, passou largos anos com o azul de Belém ao peito e voltara em ’94 para infernizar as bancadas nuas da Medideira. Debalde. Pouco afável para quem fosse mais lesto que ele, Jaime embirrou com o cortador de relva após o 3º treino e foi fazer castelos de lama para onde hoje fica a Caixa Futebol Campus. Actualmente é conselheiro de imagem de LFV. Com resultados avassaladores, diga-se de passagem.

Maside – ar de quem foi o último a mandar uma bola de papel e cuspo ao cabelo de uma colega e a quem a professora perguntou: “Ruizinho, foste tu”? A travessura em pessoa. Sempre danado para a brincadeira. Falhava golos atrás de golos apenas para gozar com os corações dos adeptos mais velhos. Passou por Alvalade XX sem marcar nenhum golo. O verdadeiro guru espiritual dos pranksters da margem sul. Os Da Weasel cresceram a ver os pontapés na atmosfera de Maside.

Rildon – Matador de instinto felino, veio do Alto Amazonas de zarabatana em riste e com coloridas pinturas de rosto para liquidar as defensivas contrárias. Mas logo se dedicou a outros negócios – nomeadamente, os ilícitos. Esteve para vir juntamente com Ramón, Paco Nassa e Wilmar, mas venceu-os a todos num Combate Mortal no porão do barco que os transportou do Brasil, ficando com o exclusivo de representar o Amora após o fatality aplicado em Paco Nassa. Rildon foi seguramente o primeiro carjacker em Portugal, quando isso ainda significava roubar Renaults 5 só para ficar com o auto-rádio que se escondia debaixo do banco. Faltava muitas vezes aos treinos, para alívio do restante balneário.

Casimiro – a verdadeira pièce de résistance do Amora. Colocado num plano central face aos demais, foi em torno de Casimiro que todo este clube com nome de fruto silvestre organizou a sua época desportiva. A sua história constitui um grande exemplo de vida. Casimiro foi descoberto numas obras na Torre da Marinha. Acabava de saborear uma merecidíssima mini e de lançar um piropo à mulher dum dirigente do Amora que ia a passar, entrecortado por um arroto gutural só ao alcance dos predestinados. Fascinado pelo amplo vigor demonstrado por Casimiro, o dirigente imediatamente abordou Casimiro para saber da sua disponibilidade, ainda com o bafo a cerveja morna a pairar no ar:
- Ó rapaz, jogas à bola?
- Iá, dou uns toques – respondeu Casimiro, limpando o bigode da espuma.
- Queres vir jogar no Amora?
- Iá, pode ser.
- Então ‘bora lá.
E foi assim. Deram-lhe um equipamento diferente dos demais para a foto individual e Casimiro por lá andou meia época a passear a sua classe. A mulher do dirigente andou muito feliz enquanto Casimiro frequentou os treinos, vá-se lá saber porquê.

O resultado deste grupo de top-models da bola não foi famoso no campo desportivo – despromoção sem apelo nem agravo e o nunca mais regressar a um patamar tão alto. Nenhum destes jogadores permaneceu na Amora em 1995/96. Foi o preço a pagar pela soberba amorense.

(*) Já outros clubes estiveram mais épocas na primeira divisão. Eis exemplos de alguns desses clubes traduzidos literalmente: Wellstay, Celtic Lisbon, FC Oporto Wine, Lady Academic, National, Female Blacksmith Steps, Amateur Girl Star, The Bethlemners, Sporting of Keys, Sporting of Thorn e Bird River.

9 comentários:

P. disse...

Querem o autógrafo do Major? Nós temos!
Aliás... são autógrafos de quase todo o plantel do Portimonense na época 89-90! Major assina no canto inferior esquerdo.

http://blogdoportimonense.blogspot.com/2008/07/nos-anos-80-dois-dos-treinadores.html

Anónimo disse...

O sr. atrás do Pedra está simplesmente uma pedra!!

Tirem-me uma duvida quem é o cabeça de abacaxi entre o Antonio Borges ( 1000 vénias) e o Eskilsson (999 vénias) no vosso painel crómatico publicitario ?

Um abraço bem apertado com Tanta força.

Rodrigues disse...

Pequeno David: esse ícone cromístico chama-se Quitó.
Existiu. E merece 1001 vénias.
Podes vê-lo aqui: http://cromos_da_bola.blogspot.com/2004/08/quit-esse-mito-da-feira_18.html

Anónimo disse...

Grande post, cacete.
Está delicioso,e o binómio Casimiro-Major é de comer e chorar por mais, tal qual um bigode de Matias polvilhado a António Jesus.
Aproveito para anunciar infelizmente o meu regresso (em breve) às lides blogueiras activas, para horror e desespero de todos vós e de três gajos na Suazilândia.
Peço desculpa.

Anónimo disse...

Amora-Barreirense...

Um jogo tão grande como um Salgueiros-Boavista, tão disputado como um Sesimbra-Laranjeiro, tão emocionante como um Sporting da Covilhã-Benfica de Castelo Branco, tão medonho como um Farense-Famalicão...

Os Ultras Amora cotra os Ultra Roulotte do Barreiro!

Festa bonita: bandeiras no ar, minis na mão, beatas no chão, restos de unha na boca.

Há de tudo...

O Bilro está na bancada......

Abraço

Ivo

Unknown disse...

Muito bom post! Parabéns pelo texto Rodrigues. Gostei particularmente do: "... entrecortado por um arroto gutural só ao alcance dos predestinados" LOL Há cerca de 2 ou 3 anos que venho com regularidade a este blog e fico feliz por ver que continua ao mais alto nível (é verdade que o que não falta é matéria prima "cromística"). Continuem o bom trabalho!

Um forte abraço Kirovskiano para todos!

Gino Magnacio disse...

Rodri

Esse bigode e mesmo do Casimiro?


PS: O Salgueiros nao desapontou na primeira jornada, perdeu em casa contra o Paradela. Reportagem na liga dos ultimos

Rodrigues disse...

O Photoshop pode fazer coisas bonitas, mas o milagre do bigode do Casimiro... só a Natureza podia fazê-lo.

Apesar de tudo, Fernando Almeida encarnou o verdadeiro espírito da Fénix e molhou a sopa. Está-lhe no sangue.

Nuno Marquês disse...

Olá a todos.Eu era puto quando a foto foi tirada mas parece-me ser quem tratava do relvado. "João do
Campo" é como era tratado nessa altura.Está resolvido o mistério, penso eu.

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